quinta-feira, 26 de março de 2015

Vão-se os anéis, ficam os dedos

Vão-se os anéis, ficam-se os dedos. Se você já foi vítima de algum tipo de violência, muito provavelmente, ouviu esse ditado de alguém como tentativa de consolo. O problema é que não somos feitos só de "dedos".
Ano passado, após 12 anos morando no Rio de Janeiro, vivenciei meu primeiro assalto. Há alguns anos, durante uma conversa com um grupo de colegas que relatavam suas experiências de assaltos ou pelo menos tentativas,  ao ouvir que eu ainda não tinha sido nem sequer abordada por um assaltante, um deles me disse: "qualquer dia desses alguém vai te abordar na rua e dizer - senhora, vim corrigir essa falha estatística na sua vida, isso é um assalto". Naquele momento achei graça e apenas ri. Porém aquela frase ecoou em minha cabeça por muito tempo. Realmente parecia que de todos meus conhecidos eu era a única que nunca tinha vivido essa experiência tão comum na cidade maravilhosa. Até que meu dia chegou, porém os assaltantes não foram tão educados ou divertidos quanto meu colega imaginou.

Antes desse dia, sempre que conversava com alguma vítima da violência urbana me vinha a mente esse ditado tão comum. Era difícil entender como tanta gente, mesmo tendo saído ileso, continuava assustado, revoltado e com medo. Depois desse dia fatídico passei a entender como, mesmo não perdendo nenhum dedo é possível ficar traumatizado após minutos de medo. Até hoje, após mais de 6 meses, ainda tenho receio de andar sozinha na rua, principalmente onde fui assaltada, ao passar por lá ainda sinto palpitação, tremor e um suor frio escorre pelo corpo.
Sempre que se discute a criminalidade urbana dois pólos se formam: de um lado os que entendem que a violência urbana é fruto do modelo sócio econômico que vivemos, e por isso é preciso atacar as raízes do problema; e do outro aqueles que querem penas mais rigorosas para delinquentes, que normalmente diz direitos humanos é para humanos direitos. Eu sempre estive no primeiro grupo. 
É muito comum ouvir pessoas dizendo " tá com pena leva pra casa" quando alguém sugere tratar com dignidade os infratores, especialmente os menores de idade. A coisa mais difícil quando se convive em grupo é separar as emoções da razão. Então, quando alguém é vítima da violência, ou teme ser, tende a agir e argumentar baseado em suas emoções. Geralmente, estão em  um frenesi de raiva, revolta, sensação de impotência e medo. Eu passei por isso depois de ser assaltada e hoje entendo porque tanta gente tem um discurso tão intolerante quando o assunto é violência urbana. Porém, busquei separar as emoções da razão para continuar vendo que as pessoas que invadiram minha vida, tirando minha paz e me fazendo temer ainda mais andar pelas  ruas do Rio de Janeiro, são tão vítimas, ou até mais, do que eu. A diferença é que eu fui vítima de dois indivíduos, enquanto eles são reféns da sociedade. Tiveram suas vidas invadidas desde que nasceram. Cresceram à margem de uma sociedade excludente, que gera seus próprios malfeitores, e quando a situação tende a ficar fora de controle quer tratar o problema como se fosse um tumor a ser exterminado. 

Quando nos deixamos levar pelas emoções buscamos vingança e não justiça. Alguns dias depois de ter feito o boletim de ocorrência do meu assalto recebi um email da delegacia com alguns suspeitos para que eu identificasse. Reconheci alguns rostos, porém não eram as pessoas que  assaltaram, eram alguns moradores de rua que circulam pela região em que moro. Coincidência ou não, nunca os vi abordando ninguém, nem mesmo para pedir dinheiro, muito menos para assaltar. Porém, foram classificados como suspeitos. Fiquei pesando, e se eu quisesse me sentir vingada e apontasse dois deles como sendo as pessoas que me assaltaram? Será que eles teriam direito à defesa? Seriam tratados com justiça? Duvido. Seria a palavra de uma "cidadã de bem" que paga impostos e contribui para sociedade contra a de um marginal, alguém que é visto como a escória da sociedade.  
Os marginais que assolam nossa sociedade sabem muito bem que suas vidas valem menos do que os objetos que eles roubam, por isso se arriscam sem pudor. Para nós, "cidadãos de bem" parece que eles estão cada vez mais audaciosos, que não respeitam a vida de ninguém e são capazes de matar alguém em troca de um celular ou os trocados que carregamos no bolso. Entretanto, como esperar respeito de quem não sabe o que é ser respeitado? 
É claro que nada disso justifica que alguém cometa um crime. Sempre há uma alternativa, vira e mexe alguém contraria todas as expectativas e segue um caminho considerado "do bem" para a sociedade, porém não é atoa que essas pessoas viram destaques na mídia, pois não é o que se espera delas. A vida é feita de escolhas, e todos em algum momento escolhemos mal, a diferença é o impacto e as consequências de nossas escolhas. 

Antes de julgar e condenar é preciso exercitar a alteridade. Ou seja, colocar-se no lugar do outro, não apenas com o intuito de avaliar uma ação isolada, mas procurando entender o contexto em que a pessoa se desenvolveu. É muito fácil olhar um assaltante de dizer que jamais faria isso. Porém, será que se estivesse sujeito as mesmas condições de vida daquele sujeito você jamais cometeria um contravenção?

Não podemos ignorar que temos um problema grave, enquanto a violência cresce aqueles que sofrem com ela se sentem desamparados pelo poder público, não há segurança, não há apoio para vítimas, não há nada que as faça acreditar que é possível mudar, que é possível recuperar os indivíduos que perturbam a ordem social. Então nos deixamos levar pela raiva medo e revolta, acreditando que estamos clamando por justiça gritamos por vingança, sem perceber que estamos vivendo um círculo vicioso, do qual não sairemos sem uma mudança profunda em nossa sociedade.  Não adiantará penas mais severas justiceiros pelas ruas. Enquanto não construirmos uma sociedade onde qualquer vida valha mais que um celular, independente se é rico ou pobre, preto ou branco, jovem ou velho. Enquanto não houver dignidade e respeito para  todos. Continuaremos vivendo essa disputa entre marginais e cidadãos de bem, sem perceber que somos todos vítimas do mesmo mal. Até que essa mudança ocorra e surta efeitos só resta agradecer por terem ido os anéis, mas ao menos terem ficado os dedos. 

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